Inércia

Fraude à cota de gênero e a marcha lenta da Justiça Eleitoral em Porto Velho

Duas ações distintas — uma contra o Avante e outra contra o PSB — revelam candidaturas femininas sem campanha real e mostram como a demora processual mantém efeitos sobre o resultado das urnas


O Ministério Público Eleitoral ajuizou ação para que a Justiça reconheça fraude à cota de gênero nas eleições municipais de 2024 em Porto Velho. O caso principal mira o Avante e descreve, com documentos de prestação de contas e checagem de redes sociais, que duas mulheres foram registradas só para cumprir o mínimo legal de 30% de candidaturas femininas. Em paralelo, outra ação, de número 0600510-85.2024.6.22.0006, questiona a nominata do PSB pelo mesmo motivo. Os dois processos correm na capital e, segundo advogados e partes envolvidas, avançam mais devagar que casos semelhantes julgados no interior do estado.

No processo contra o Avante, os autos relatam que Carla Teles Priore recebeu R$ 36,5 mil do fundo eleitoral e não executou campanha própria. A movimentação registrada limita-se a R$ 72 em adesivos compartilhados com a então candidata à prefeitura Mariana Carvalho, sem peças exclusivas nem atos públicos em favor da própria candidatura. O resultado nas urnas foi de três votos. Ainda de acordo com o material juntado, não há registro de comícios, não há equipe, e as redes sociais não mostram pedido de voto nem agenda de rua. Em outra frente, a candidata Gleici Tatiana Meires dos Santos renunciou cinco dias antes do pleito, fora do prazo que permitiria substituição, e aparece nas publicações apoiando o vereador eleito Breno Mendes, em vez de pedir voto para si. Sua prestação de contas não recebeu repasse do fundo eleitoral e não indica gastos de campanha.

Com a exclusão dessas duas figuras femininas, a nominata do Avante teria permanecido com cinco mulheres quando o mínimo exigido para o tamanho da chapa era de sete. O Ministério Público pede a cassação do DRAP, a perda de diplomas de eleitos e suplentes vinculados ao partido e a declaração de inelegibilidade por oito anos para quem praticou ou anuiu com a conduta, além da anulação dos votos para recálculo do quociente eleitoral.

Os nomes vinculados ao DRAP do Avante, alcançados pelo pedido caso a fraude seja reconhecida, são: Anderson dos Santos Mendes, Breno Mendes da Silva Farias, Carla Andreia de Almeida Tavares, Carla Teles Priore, Carlos Eduardo Rocha Araújo, Clever Custodio de Almeida Filho, Daihane Regina Lopes Gomes, Evaldo Silva Carvalho, Francisco Alex Sales, Francisco Ferreira dos Santos, Jeanderson Melonio Rabelo, José Barbosa Reis, José Felipe Filho, José Uilson Guimarães de Souza (Zé Paroca), Joyce Ramalho Pires Konagesk, Karla Luciana Barreto, Márcia Aparecida Costa Silva, Paulo Tico Floresta, Raimundo Costa de Moraes, Raimundo Nonato Borges de Carvalho, Ronaldo Gouvea Sanches e Rosely Leite Sá de Souza, além de Gleici Tatiana e Carla Priore que aparecem no centro da narrativa fática.

No caso do PSB, a ação apresentada por José Assis Junior Rêgo Cavalcante, da Federação PSDB/Cidadania, aponta três candidaturas femininas sem campanha real: Caroline Suarez Costa (Carol Suarez), Luzia da Silva Ozorio de Oliveira e Rafaela Carolina Evangelista de Oliveira. As três tiveram votação inexpressiva — dois, sete e oito votos, respectivamente —, não apresentaram material gráfico, não registraram atos efetivos de rua e exibem prestações de contas padronizadas, com contratos que, segundo a petição, não se converteram em mobilização eleitoral. O total de R$ 23,2 mil do FEFC foi distribuído entre as três sem demonstração de retorno em campanha própria.

O processo descreve a influência de um núcleo familiar na condução financeira e administrativa da nominata, citando que Caroline é parente de dirigente partidário, Rafaela mantém vínculo direto com familiar desse dirigente e, em um dos casos, a pessoa registrada como coordenadora não residia em Porto Velho durante a campanha. A acusação sustenta que a função dessas inscrições foi apenas formal: preencher o percentual exigido e viabilizar a chapa, sem disputa efetiva por votos. Se a Justiça reconhecer a simulação, o pedido inclui cassação do DRAP do PSB, nulidade dos votos e inelegibilidade dos envolvidos por oito anos.

As duas ações se amparam em dispositivos da Constituição, do Código Eleitoral, da Lei Complementar 64/1990 e em resoluções do TSE que consolidam o entendimento sobre fraude à cota de gênero, incluindo a Súmula 73. A linha central é objetiva: votação zerada ou ínfima, prestação de contas sem movimentação relevante e ausência de atos de campanha em benefício próprio constituem elementos suficientes para caracterizar o desvirtuamento da regra de 30%, ainda que não se prove a intenção subjetiva de fraudar.

O alcance dessas causas, se procedentes, ultrapassa o destino de cada candidata listada. A consequência prevista é ampla, com cassação do DRAP, anulação dos votos do partido e redistribuição das cadeiras. No plano prático, isso projeta efeito direto na composição da Câmara Municipal e no calendário político da cidade, porque a Justiça teria de refazer o cálculo do quociente eleitoral e reordenar as vagas.

Há, porém, um ponto que aparece com força nos bastidores e na fala de quem acompanha o dia a dia de cartórios e gabinetes: a diferença de ritmo entre a capital e o interior. Municípios como Vilhena, Rolim de Moura e Pimenta Bueno já enfrentaram processos semelhantes com decisões em tempo hábil, inclusive com recontagem de votos, enquanto em Porto Velho os autos se arrastam. Reportagens locais registram que audiências demoram a ser designadas, juntadas técnicas pedem vista por mais tempo e prazos acabam se somando, alongando a tramitação.

Esse descompasso produz reflexos na vida do eleitor e no equilíbrio da disputa. Com processos lentos, vereadores diplomados permanecem em atividade, deliberando sobre orçamento, serviços e leis municipais, mesmo com acusações formalizadas e provas documentais sob análise. Quando decisões chegam tarde, a correção do resultado perde força e a confiança da população fica abalada, porque o cidadão vê recursos públicos de campanha circulando sem retorno em disputa real e percebe que as regras de participação feminina viram formalidade no papel.

É importante frisar que a cota de gênero não nasceu para cumprir número. A ideia é abrir espaço concreto para mulheres na política, garantindo tempo de TV, financiamento e presença na rua. Quando a regra vira barreira para atravessar com candidaturas de fachada, a cidade perde debate, o eleitor perde escolha e a própria política se afasta da realidade das mulheres que tocam escola, posto de saúde, feira e transporte no bairro. Em Porto Velho, onde a vida corre entre a beira-rio, os bairros da Zona Leste e a BR movimentada, a representação feminina não pode ser vitrine vazia.

As petições que sustentam as duas ações em Porto Velho apresentam documentos de prestação de contas, prints preservados por ferramenta de coleta forense, pesquisas em bases públicas e checagem de publicações online. No caso do Avante, o relatório mostra transferência do fundo eleitoral, notas fiscais canceladas e o único gasto reconhecido de R$ 72 em adesivos que, na prática, serviram à imagem de outra candidatura. No caso do PSB, a narrativa soma baixa votação, vínculos familiares na tesouraria e contratações sem lastro em atos de campanha.

O Ministério Público pede que, além das sanções eleitorais, os autos sejam remetidos para medidas disciplinares e, se couber, penais, conforme prevê a legislação. Se confirmado o abuso, a Justiça deverá reconhecer a nulidade dos votos e recálculo das cadeiras, o que mexe com suplências, comissões e alinhamentos internos da Câmara.

Do lado de fora do processo, o debate público se concentra em duas frentes. A primeira cobra fiscalização preventiva mais firme dos partidos, exigindo prova de campanha própria antes mesmo do dia da votação, como material, equipe mínima e agenda básica. A segunda insiste na celeridade: se o interior consegue decidir mais rápido, a capital precisa ajustar fluxo de trabalho, priorização e agenda para que fatos do período eleitoral sejam julgados ainda com o calor das urnas, evitando arrastar a disputa para o ano seguinte.

Enquanto os autos seguem seu caminho, Porto Velho convive com a possibilidade de mudança no mapa político por decisão judicial. Se a fraude for reconhecida em qualquer uma das duas ações, a repercussão alcança a nominata inteira e altera a matemática da Câmara. Se a Justiça entender que não houve desvirtuamento da cota, os mandatos seguem como estão. Em ambos os cenários, o que fica é a necessidade de garantir que dinheiro público e regra de inclusão cumpram, de verdade, o papel de aproximar a política da vida real das pessoas.

Para o leitor que acompanha de perto a rotina da cidade, o resumo é direto: as ações tratam de candidaturas sem campanha própria usadas para cumprir número. O Ministério Público apresenta documentos e pede cassação ampla. A Justiça da capital decide mais devagar que no interior, e essa demora mantém efeitos sobre o resultado. Os nomes citados estão nos autos, os valores também. O desfecho, agora, depende do julgamento, que precisa ser técnico, transparente e em tempo que faça sentido para quem acorda cedo, pega ônibus lotado e quer ver a lei funcionando de forma igual para todos.

Em um estado de dimensões amazônicas, onde a distância costuma ser usada como desculpa para atrasos, o contraste chamou atenção justamente pelo inverso: cidades mais distantes conseguiram concluir casos de fraude à cota com rapidez; a capital, com mais estrutura, não. Essa inversão acende alerta e pressiona por ajustes, porque a Justiça Eleitoral é pilar de confiança na democracia. Quando ela chega no tempo certo, a regra vale; quando atrasa, a regra se enfraquece e a rua sente.

Os processos seguem no foro competente. Até a decisão, os eleitos exercem seus mandatos. Em caso de procedência, a Câmara muda de desenho e os partidos reorganizam suas bancadas. O passo seguinte será monitorar como as legendas vão tratar as próximas nominatas: se com candidaturas femininas reais, com voz e campanha na rua, ou se com novas tentativas de cumprir número sem presença de verdade. O futuro dessa história se escreve agora, nos autos, mas também nas conversas de bairro, na mobilização de mulheres que querem disputar e na cobrança por resposta célere e justa.

Por fim, a discussão sobre cota de gênero em Porto Velho não é só tema jurídico; é retrato de participação social. Quando a lei funciona, mais mulheres entram no debate, surgem ideias novas e a cidade se vê mais de perto nas cadeiras do plenário. Quando a lei vira atalho, a política perde cor e a vida cotidiana segue sem voz. O que está em julgamento, portanto, é o respeito ao eleitor e o compromisso com a regra do jogo. A sociedade acompanha, a imprensa registra e a Justiça decide.

Referência jornalística sobre a diferença de ritmo entre capital e interior pode ser encontrada em reportagens locais que comparam decisões já proferidas em Vilhena, Rolim de Moura e Pimenta Bueno com processos ainda em curso na capital, destacando que a tramitação célere fora de Porto Velho evitou que candidaturas beneficiadas chegassem a se consolidar no exercício do mandato. Essa comparação ajuda a entender por que a celeridade, aqui, não é detalhe técnico, mas condição para que a regra de 30% cumpra sua finalidade e não apenas sua formalidade.

Assim, a capital amazônica entra em mais um capítulo do seu calendário político com dois processos que cobram do sistema eleitoral aquilo que o rondoniense mais quer ver: lei valendo, dinheiro público bem aplicado e candidatura feminina de verdade, com campanha no bairro, conversa na feira e compromisso com a cidade.